‘Estamos perto de um estado de sítio na Argentina’, afirma professor da UBA
Leandro Morgenfeld, especialista em Relações Internacionais, comenta lawfare contra Cristina e relata a situação dramática do país vizinho sob o governo Milei
A atual situação política, social e econômica da Argentina é muito diferente da suposta estabilidade defendida pela mídia hegemônica brasileira, que defende o governo de extrema direita de Javier Milei como um exemplo para a América Latina.
Para explicar o que está acontecendo no país e por que Milei é crucial aos interesses dos Estados Unidos no continente, Opera Mundi conversou o historiador e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA), Leandro Morgenfeld, durante sua visita ao Brasil para o lançamento do livro Nuestra América, Estados Unidos y China (CLACSO, 2025).
Morgenfeld é membro do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), onde coordena o Grupo de Estudos sobre os Estados Unidos. “Estamos perto de um estado de sítio na Argentina”, avalia, ao citar como exemplos da ofensiva da extrema direita, os ataques semanais da polícia contra os aposentados que protestam no país e o decreto presidencial que permite prisões sem mandado judicial.
“Nunca tivemos um presidente argentino tão ligado aos norte-americanos”, aponta o especialista em relações internacionais. Em sua avaliação, “o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os Estados Unidos estão sustentando Milei, porque não querem que a Argentina se vire, novamente, para o peronismo”. O movimento, afirma, é parte de uma guerra híbrida em meio às disputas hegemônicas globais que ele explica em detalhes nesta entrevista.
O acadêmico também falou sobre a situação da ex-mandatária Cristina Kirchner (2007-2015), que foi visitada na última quinta-feira (03/07) pelo presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, em sua prisão domiciliar, em Buenos Aires. Ela é vítima de uma condenação considerada por alguns juristas como uma operação de lawfare, em meio a uma escalada de repressão das forças populares no país vizinho, governado pela extrema direita desde dezembro de 2023.
Leandro Morgenfeld: Cristina anunciou, em 2 de maio, na frente de sua casa, que seria candidata à deputada estadual por Buenos Aires, província que detém 40% do PIB argentino, nas eleições locais de 7 de setembro. Oito dias depois, a Corte Suprema validou uma decisão anterior que a condenava à prisão por uma suposta corrupção, sem provas, relacionada a obras públicas e construção de estradas; e a condenou.
Especialistas dizem que, em termos jurídicos, sua condenação é um desastre judicial, um caso clássico de lawfare. Cristina não pode mais ser candidata a nenhum cargo público. Está em prisão domiciliar, usando uma tornozeleira eletrônica, sem poder receber convidados.
É importante destacar que a Suprema Corte da Argentina tem apenas três juízes, porque não houve maioria no Congresso para selecionar os demais. Dos três, dois foram nomeados por decreto pelo então presidente Maurício Macri, o que é ilegal. Depois, eles foram validados pelo Congresso, mas a Suprema Corte é muito parcial e, por conta disso, todos afirmam que a decisão é parte de lawfare. Frente à ofensiva, até mesmo os críticos ao peronismo se uniram em defesa de Cristina.
A pressão não é só interna. Marco Rubio, atual secretário de Estado de Donald Trump, é um inimigo antigo dos Kirchner. Enquanto era senador, ele pressionou o governo Biden para estabelecer sanções contra ela, seus filhos e funcionários. Agora, no governo Trump, as sanções foram realizadas. Isso é parte de uma pressão dos Estados Unidos para marginalizar uma dirigente política que, goste-se ou não, é uma das mais populares da Argentina.
Opera Mundi: Como você avalia o governo Milei?
Leandro Morgenfeld: Nós estamos cada vez mais próximos de um estado de sítio. No dia 17 de junho, o governo argentino editou um decreto presidencial que permite à polícia deter às pessoas sem decreto judicial.

Tatiana Carlotti / Opera Mundi
Se a polícia te considerar suspeito por algum motivo qualquer, ela pode te prender sem ordem judicial. O decreto também a autoriza a espionar as redes sociais, sem ordem judicial. Isso também acontece nos Estados Unidos, nós temos colegas com green card que estão apagando seus comentários nas redes sociais em autocensura.
É um atraso, um ataque à democracia e à liberdade de expressão. Eles estão fazendo uma política repressiva muito dura. Há meses, todas as quartas-feiras, os aposentados argentinos se mobilizam em frente ao Congresso em Buenos Aires e sofrem forte repressão policial.
Milei é um economista outsider da política, que se diz ‘libertário’ e defende que o Estado não deveria existir, apenas o setor privado. Ele defende um Estado mínimo com apenas as Forças Armadas, segurança interna e a provisão da Justiça, sem educação, saúde, políticas sociais. É uma visão ultra neoliberal. Tudo gira em torno da oferta e da demanda.
O orçamento das universidades, da ciência e tecnologia, dos hospitais e da saúde pública, tudo está quebrando. Ele está tentando mudar a sociedade argentina, não somente a economia, mas a política e a sociedade. Ele diz que o Fórum de Davos está controlado pelos comunistas. É um negacionista das mudanças climáticas, contra a luta do feminismo, contra o aborto legal, que chama os gays de pederastas.
Opera Mundi: Como estão as mobilizações?
Leandro Morgenfeld: Ano passado, ocorreram duas grandes mobilizações das universidades e ele teve de recuar. A universidade pública e gratuita é muito importante na Argentina. São mais de dois milhões de universitários, 5% dos argentinos têm acesso irrestrito ao ensino superior e são mais de 60 universidades nacionais públicas pelo país. A Universidade de Buenos Aires (UBA) tem mais de 300 mil estudantes.
Neste ano, em 1° de março, houve uma mobilização antifascista muito grande. No dia 8 de março, houve outra, enorme, das mulheres feministas. No 24 de março, como todos os anos, tivemos mais uma manifestação gigante no aniversário do golpe militar. Já foram quatro greves gerais.
A resistência é forte, mas Milei tem base eleitoral. Nós estávamos com uma inflação anual em 250%. Com a queda da inflação e do dólar, duas semi estabilidades, ele garantiu o apoio de, pelo menos, metade da população. Como Trump, Milei foi exitoso ao se apresentar como um outsider da elite política para os que perderam a esperança com os partidos tradicionais. ‘Eu sou como vocês’.
Há um todo um contexto de crise do emprego, de trabalhadores uberizados, do surgimento de uma visão ultra-individual que embarca no discurso de que o Estado é ladrão. Então, se chega uma pessoa dizendo que o Estado deve ser mínimo, as pessoas votam.
Opera Mundi: Como estão as forças políticas hoje? Há alternativas no peronismo
Leandro Mongerfeld: Milei também está destruindo a direita. Em maio, o seu partido, A Liberdade Avança (LLA, por sua sigla em espanhol) venceu as eleições legislativas na cidade de Buenos Aires, governada pelo Proposta Republicana (PRO), partido próximo à direita do PSDB, do ex-presidente Maurício Macri.
Macri tinha sua própria candidata, Silvia Lospennato, mas Milei apoiou outro candidato, uma pessoa muito desagradável, Manuel Adorni que ganhou com 30%, vencendo o peronismo que o obteve 27% e o PRO, com 16%. De forma geral, o LLA e o PRO estão juntos contra o peronismo.
O problema é que o peronismo está muito dividido. Eles têm maioria no Senado e um bloco importante na Câmara dos Deputados, governam a principal província, Buenos Aires, que têm 40% do PIB do país. Para as eleições presidenciais, daqui a dois anos, dois nomes se destacam: o do atual governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, que venceu as eleições com 20 pontos de diferença, é apontado como candidato natural. E o de Juan Grabois, candidato a pré-presidente dentro do União Pela Patria.
Kiciloff governa a província mais complexa da Argentina, a mais industrializada, que tem uma pobreza grande e precisa do apoio do governo central, mas hoje esse apoio não existe. Já Grabois, muito amigo do papa Francisco, é ligado aos movimentos sociais. Ele nunca ocupou um cargo público, coordena os movimentos populares e durante o governo Milei, sempre esteve na rua.
Opera Mundi: Dizem que é o bolso quem manda nas eleições, como está a economia da Argentina?
Leandro Morgenfeld: A situação financeira está muito ruim. O FMI e os Estados Unidos estão sustentando Milei, porque não querem que a Argentina se vire, novamente, para o peronismo. Ele é funcional à estratégia de domínio ideológico e político dos Estados Unidos e à agenda de Trump.
Trump quer evitar que os países da América Latina – com lideranças como Sheinbaum no México, Lula no Brasil e Petro na Colômbia – avancem como um bloco nacional-popular. Com a Argentina, seriam quatro países emergentes do continente muito mais próximos dos BRICS do que dos Estados Unidos. Para eles é muito importante que Cristina seja presa para que o peronismo não tenha chances de voltar ao poder.
Para isso, eles colocaram muito dinheiro. Em 11 de abril, o FMI fez um acordo com o governo argentino. O Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott Bessent, chegou três dias depois ao país para apoiar a negociação. É escancarado. Como presidente eleito, Milei foi dez vezes aos Estados Unidos, é o que mais viajou para lá. Nunca tivemos um presidente argentino tão ligado aos norte-americanos.
Opera Mundi: Como se dá essa ligação?
Leandro Morgenfeld: Milei dá tudo o que eles querem. Ele descartou um compra de aviões militares chineses já acordada, com financiamento, para comprar aviões norte-americanos F-16 de um país europeu, que eram muito mais caros e obsoletos, com mais de 40 anos.

Reprodução Casa Rosada / Presidência da República Argentina / Wikipedia
Ele outorgou aos Estados Unidos o controle da hidrovia Paraguai-Paraná, principal canal de comércio fluvial na Argentina. Já prometeu fazer uma base dos Estados Unidos na Terra do Fogo. Enquanto isso, Trump impôs tarifas de 50% sobre importações de aço e alumínio, um dos principais produtos importados da Argentina.
Os Estados Unidos são o único país no mundo que tem votos no FMI, quando eles dizem “não”, é preciso negociar com o secretário de Estado. Em 2018, quando Trump era presidente, eles deram 50 bilhões de dólares para o governo Macri. Hoje, a Argentina é o principal devedor do FMI. Se ela não pagar, o fundo terá problemas, porque devemos mais que os dez seguintes devedores juntos.
Todo o plano financeiro de Milei está atrelado aos Estados Unidos. Seu objetivo é chegar até as eleições de meio de mandato, em outubro. Se algo mudar até lá, o plano econômico argentino pode ruir.
Opera Mundi: E tem a questão do lítio.
Leandro Morgenfeld: Sim, a Argentina, Chile e Bolívia compõem o triângulo do lítio. São três países que detêm as reservas mais importantes de lítio do mundo, que é um elemento essencial para as baterias dos carros elétricos. A questão é se Argentina vai desenvolver sua própria capacidade de fazer as baterias ou vai apenas exportar o lítio. Muitas empresas, sobretudo chinesas, têm investimentos na Argentina, mas também norte-americanas. Há uma disputa importante.
As novas disputas geopolíticas têm a ver com gás e petróleo, mas também com os minerais estratégicos, as chamadas terras raras [17 minerais de difícil extração], controladas em grande parte pela China. Quando Trump impôs tarifas delirantes contra a China, ela o retaliou proibindo a exportação desses minérios para os Estados Unidos.
Esse tipo de disputa é a nova fase das guerras híbridas e fragmentadas que mencionamos no livro. Nós defendemos que outros países da região tenham uma política conjunta para explorar esses recursos estratégicos, para garantir o desenvolvimento tecnológico e a transferência de tecnologia. Vamos transferir o lítio, mas fazer uma fábrica em que a metade dos técnicos seja argentinos ou chilenos e metade de chineses. E que daqui a cinco anos possamos exportar não somente o lítio, mas bateria de lítio.
Opera Mundi: O que é essa guerra híbrida?
Leandro Morgenfeld: Guerra híbrida é uma guerra onde há uma dissolução entre a fronteira militar e civil, entre interesse público e privado, entre o que faz os Estados e as corporações. Nela, isso tudo se mistura. O que estamos vendo hoje é a dissolução das mediações políticas. Evidentemente, que o Estado sempre respondeu a interesses particulares, mas sempre com mediações políticas.
As decisões geopolíticas estão entrelaçadas com as decisões das grandes corporações. A novidade com Trump é que, agora, as grandes empresas tecnológicas são diretamente parte do governo. Três dias antes de assumir a presidência, ele lançou uma moeda digital, uma criptomoeda, chamada “Trump”. Tempos atrás, fez um jantar em Mar-a-Lago, a sua segunda Casa Branca, com os 200 maiores compradores dessa moeda.
Agora, ele lançou um celular “Trump”, uma linha própria, supostamente feita nos Estados Unidos, vendido por 500 dólares. Em sua viagem ao Oriente Médio, o governo do Catar deu a ele de presente um avião de 700 milhões de dólares, após fazer contratos bilionários em compras de armamento. É uma corrupção em grande escala, sem preocupações de ser escondida.
Os Estados Unidos pressionam, usam as ferramentas políticas, diplomáticas, meios de comunicação e todo o chamado soft power, de distintas agências. Além disso, eles detêm o domínio do dólar, do Fundo Monetário Internacional, são muitas as formas de pressionar um governo. O lawfare é uma delas. Se você está fazendo coisas que vão contra os interesses dos Estados Unidos, ou enfrentando certos poderes transnacionais, é provável que você pague um preço e seja preso, após ser acusado de corrupção.